Neste tópico, discutiremos alguns pressupostos da Teoria Histórico-Cultural (THC) basilares para compreendermos as relações entre aspectos do psiquismo humano e aspectos pedagógicos, suportes teórico-metodológicos que orientam as ações docentes. Esta teoria é uma abordagem psicológica do desenvolvimento humano, visa pesquisar e compreender os processos de inserção social e de apropriação de bens culturais produzidos pela sociedade. A THC tem como precursores os pensadores russos Vigotski, Luria e Leontiev, com importantes colaboradores e continuadores como Elkonin, Rubtsov, Galperin, Talizina, Davidov, Márkova, Repkin, entre outros.
Com base em pesquisas e estudos, estes representantes da teoria anunciam a compreensão do desenvolvimento psiquismo do homem como resultado das relações social, mediadas pela linguagem. Por meio dela, o homem produz e fixa na história conhecimentos que passam de geração a geração. A linguagem, aponta Luria (2001), tem um papel essencial no desenvolvimento dos processos psíquicos, pois por meio dela o homem se relaciona com pessoas e com o mundo – relação externa - aos poucos a linguagem exterior transforma as estruturas mentais – relação interna - é, portanto, um mecanismo-chave de desenvolvimento do psiquismo. Nesse sentido, o psiquismo humano tem origem histórico-social, pois se dá nas atividades humanas em que o sujeito participa: social, lúdica, de estudo e de trabalho. Assim, o homem transforma o mundo e a si mesmo.
A função da escola é, exatamente, a organização das atividades de estudos para propiciar as condições concretas de apropriação do conhecimento de forma que possa “exercer uma influência substancial tanto no desenvolvimento psíquico geral dos alunos quanto no desenvolvimento de suas habilidades especiais” (DAVÍDOV, 1988, p.9), ou seja, que garanta a apropriação dos bens culturais da sociedade.
Organizar atividades de estudos pressupõe analisar e compreender a tríade no campo da educação escolar: conteúdo, sujeito e forma. Assim, levantamos importantes questionamentos referentes a estes três elementos e suas interconexões.
Quais seriam os conhecimentos (conteúdos) relevantes e necessários ao desenvolvimento do estudante e que não são dados nas relações cotidianas?
Como ensinar (forma) esses conhecimentos, a fim de promover o desenvolvimento das máximas possibilidades psíquicas do estudante?
Qual o nível de conhecimento e desenvolvimento do estudante (sujeito)?
Ao selecionar e organizar o conteúdo que será estudado no decorrer dos anos de escolaridade, a atenção dos profissionais da educação precisa voltar-se à uma análise fundamental: Qual a função da escola? Quais conteúdos são essenciais em cada área de conhecimento para o desenvolvimento do estudante?
Em relação ao conteúdo escolar, Vigotski (2001) aponta e explica dois tipos de conceitos, os científicos e os cotidianos. Para o autor, essa compreensão é crucial para a organização curricular e para sua efetivação nos processos de ensino, de aprendizagem e de desenvolvimento do estudante. Antes de tratarmos sobre os tipos de conceitos, é preciso esclarecer que “[...] o conceito é, em termos psicológicos, um ato de generalização” e seu desenvolvimento é um modo de “[...] transição de uma estrutura de generalização a outra” (VIGOTSKI, 2001, p.246), o que implica a abstração dos aspectos essenciais do objeto de estudo.
Os conhecimentos escolares se configuram (ao menos deveriam) como um sistema conceitual científico. Este sistema pode ser definido como um conjunto de generalizações teóricas, de caráter consciente e voluntário, e interconexas. Seu nível de abstração e de complexidade exige uma organização de ensino, também, sistematizada e intencional para que o estudante compreenda o sistema conceitual do objeto de estudo.O desenvolvimento do conceito científico
[...] transcorre sob as condições do processo educacional, que constitui uma forma original de colaboração sistemática entre o pedagogo e a criança, colaboração essa em cujo processo ocorre o amadurecimento das funções psicológicas superiores da criança com o auxílio e a participação do adulto (VIGOTSKI, 2001, p.244).
Diferentemente, os conceitos cotidianos são entendidos como generalizações vagas e simples. Os mesmos são elaborados de forma empírica, involuntária e não consciente, normalmente em situações espontâneas do dia a dia. A formação e a utilização desses conceitos têm caráter inconsciente e não intencional por parte do sujeito. Vigotski (2001) esclarece que os conceitos cotidianos advêm de relações assistemáticas entre pessoas com quem se convive, ou seja, se originam da experiência espontânea da criança. Por essa razão, sua formação não implica a necessidade de um ensino sistematizado em ambiente escolar.
A escola não tem a função de ensinar conceitos cotidianos, no entanto, o professor deve identificá-los e considerá-los como ponto de partida, mas o objeto e objetivo de aprendizagem são os conceitos científicos. Segundo Vigotski (2001), os conceitos cotidianos formados em atividades espontâneas geram um tecido conceitual para a apropriação do sistema de conceitos científicos. Para o autor citado, a
[...] assimilação do sistema de conhecimentos científicos [...] não é possível senão através [...] da [...] relação mediada com o mundo dos objetos, senão através de outros conceitos anteriormente elaborados. Sejam espontâneos ou científicos (VIGOTSKI, 2001, p.269).
Um currículo escolar, portanto, deve ser constituído por sistemas de conceitos científicos das diferentes áreas de conhecimento: Língua Portuguesa, Matemática, Geografia, História, Ciências Naturais; além de ter seu ensino adequadamente organizado. O tipo de conceito e a forma de ensiná-lo são pressupostos primordiais à aprendizagem e ao consequente desenvolvimento cognitivo-afetivo do sujeito. Queremos dizer que, não basta o currículo conter uma lista de conceitos científicos, se forem transmitidos por meio de definições prontas e de sua memorização. Se assim ocorrer, não possibilitamos a real aprendizagem e fragmentamos os conceitos e esses perdem o real significado, descaracterizando o necessário sistema conceitual, marca decisiva do conceito científico.
Ao organizar o ensino de um conceito científico, por exemplo, de acentuação das palavras é fundamental ensinar os demais conceitos que se relacionam com o mesmo, como: separação das sílabas, classificação silábica, sílaba tônica e átona, sinais gráficos utilizados, regras de acentuação, entre outros. Não é apenas citá-los para o estudante memorizar, mas ensinar cada um desses conceitos, construindo um sistema conceitual. Assim, apropriar-se do conceito de sílaba tônica, identificando a intensidade com que são pronunciadas, é condição para acentuá-la ou não, pois há que considerar as normas de acentuação. Entendemos, então, que todos os conceitos do sistema são, necessariamente, conteúdos de ensino sistematizado, em sala de aula, o que pressupõe o domínio, dos mesmos, pelo professor.
Além de conhecer profundamente o objeto de estudo, o professor necessita conhecer o sujeito a quem vai ensinar, se e quais conceitos cotidianos e/ou científicos já possui sobre o objeto e qual o seu nível de desenvolvimento. Vigotski (2001) afirma que o professor, ao avaliar o estudante, precisa identificar dois níveis de conhecimento: o nível de desenvolvimento atual (ou real) e o nível de desenvolvimento potencial (ou próximo).
Além da detecção dos níveis de desenvolvimento do estudante, é relevante considerar a atividade-guia de seu desenvolvimento, nas diferentes etapas da vida. A atividade-guia apresenta-se como a principal atividade social realizada pelo sujeito promotora de seu desenvolvimento psíquico.
A primeira coisa que devemos notar, quando nos esforçamos por resolver a questão das forças motoras do desenvolvimento do psiquismo, é portanto a modificação do lugar que a criança ocupa no sistema das relações sociais. É, porém, evidente que este lugar não determina diretamente o desenvolvimento. Ele caracteriza simplesmente o nível atingido num dado momento. O que determina diretamente o desenvolvimento do psiquismo da criança é a sua própria vida, por outras palavras, o desenvolvimento desta atividade, tanto exterior como interior (LEONTIEV, 1978, p.291).
Segundo o autor citado, a atividade-guia de cada etapa da vida coloca em curso o desenvolvimento dos processos psíquicos, dá origem à formação de novos processos e estrutura a própria personalidade. Na mesma direção, Elkonin (1987) afirma que o sujeito, por meio dessa atividade, relaciona-se com as pessoas e o mundo objetal, suprindo suas necessidades especificadas e desencadeando alterações qualitativas nos processos psíquicos.
Importante esclarecer que o termo atividade-guia utilizado pela Teoria Histórico-Cultural não se refere à atividade proposta pelo professor, em sala de aula. Atividade-guia refere-se às atividades realizadas pelas crianças que têm maior importância em seu desenvolvimento durante determinado período: Comunicação direta-emocional (0-1 ano), atividade objetal-manipulatória (1-3 anos), jogos de papéis (3-7), atividade de estudo (7-11/12 anos), comunicação íntima pessoal (11/12-15 anos) e atividade profissional (15-17/18 anos). O que o professor propõe aos estudantes, em sala de aula, são tarefas escolares, por exemplo, tarefas: fotocopiadas, transcritas do quadro, no livro didático, de produções, de pesquisas, em grupo, passeios culturais conduzidos e orientados pelo professor. Neste sentido, o professor propõe tarefas escolares que incidam sobre as atividades-guia e promovam novas formações psíquicas.
Elkonin (1969a; 1969b; 1987), com base em suas pesquisas, elaborou as premissas relativas às etapas de desenvolvimento do sujeito e sua atividade-guia, respectivamente, que sintetizamos no quadro que segue:
Primeiro ano de vida (0-1)
Comunicação emocional direta
Relação emocional criança-adulto.
A criança utiliza choro, gestos, burburinhos para se comunicar com o adulto. Este responde a essas ações dando significados a elas, enriquecendo e transformando-as.
Primeira infância (1-3)
Atividade objetal-manipulatória
Manipulação e aprendizagem do uso social dos objetos, com a demonstração dessas funções pelo adulto.
A linguagem medeia a relação criança-objeto-adulto.
Tomada de consciência de si mesmo.
Idade pré-escolar (3-7)
Jogos de papéis
Internalização dos papéis sociais e padrões comportamentais por meio da reprodução das ações realizadas pelos adultos.
Essa reprodução está condicionada à percepção que a criança tem do mundo.
Encadeamento lógico das ações nos jogos.
Conscientização das ações humanas e das próprias ações.
Idade escolar primária (7-11/12)
Atividade de estudo
Atividade condicionada à entrada da criança na escola.
Desejo de realizar ações socialmente valorizadas.
Apropriação de novos conhecimentos sistematizados e científicos apresentados pelo professor.
Idade escolar média (11/12-15)
Comunicação íntimapessoal
Ampliação e transformação das relações interpessoais com os adultos e seus pares.
Relações mediatizadas por normas sociais.
Tomada de consciência social, de posicionamento pessoal com perspectivas críticas.
Atividade de estudo mantém-se como relevante, porém de forma mais consciente.
Idade escolar juvenil (15-17/18)
Atividade profissional
Apropriação de conhecimentos teórico-práticos para a atividade estudantil e profissional, ocupando um novo lugar na sociedade.
Busca de sentido social nas atividades desenvolvidas.
Maior autonomia cognitiva e criativa.
Quadro 2: Etapas do desenvolvimento cognitivo-afetivo e sua atividade-guia.
Fonte: Da autora.
No decorrer da vida e do surgimento de novas atividades humanas, as atividades anteriores não deixam de existir, somente deixam de ser a principal do desenvolvimento cognitivo-afetivo.
O psiquismo humano forma-se e transforma-se por meio de diferentes atividades humanas, com apropriações de bens culturais da sociedade, o que evidencia que a estrutura da consciência está condicionada à estrutura da atividade social. A linguagem e o pensamento, por exemplo, são funções psíquicas que surgem e se desenvolvem por meio das relações e atividades sociais (ELKONIN, 1987; LEONTIEV, 1978).
Ao considerar os tipos e as características das atividades-guia, podemos evidenciar o importante papel da escola na formação e transformação das mesmas, assim como, o quão é importante estarem presentes na organização do ensino para se efetivar o desenvolvimento mental do escolar em suas máximas possibilidades. Como podemos perceber, essas relações ocorrem em uma via de mão dupla.
O ensino adequado é aquele que promove os processos de aprendizagem e de desenvolvimento psíquico do sujeito, e a atividade de estudo – realizada na escola - é a forma para efetivarmos esses processos. A atividade de estudo pode desencadear importantes transformações psíquicas nos estudantes se as ações de estudo promoverem novos níveis de capacidades cognitivas. O ensino que incide nos conhecimentos já apropriados é infecundo. Um ensino que desenvolve apresenta condições para que ocorram novas formações psíquicas ou se ampliem as existentes, o que exige novos e mais elevados conhecimentos, não adquiridos nas relações cotidianas fora da escola.
Se desejamos transformações psíquicas isso exige condições para tal, ou seja, demanda:
Vygotsky (1982, p.111-122) esclarece que:
[…] o ensino é uma das principais fontes de desenvolvimento dos conceitos infantis e uma potente força diretiva desse processo. Ao apresentar esta hipótese, embasamo-nos no fato notório de que a instrução constitui, durante a idade escolar, um fator decisivo e determinante de todo o destino do desenvolvimento intelectual da criança, incluindo o desenvolvimento de seus conceitos.
Castellanos e outros (2001, p.57) define uma organização do ensino promotora do desenvolvimento como um
[...] processo sistematizado de transmissão da cultura em uma instituição escolar em função do compromisso social, que se organiza a partir dos níveis de desenvolvimento atual e potencial dos estudantes e conduz ao trânsito contínuo a níveis superiores de desenvolvimento, com a finalidade de formar uma personalidade integral e autodeterminada, capaz de transformar-se e transformar sua realidade em um contexto histórico concreto, sendo o essencial, a autodeterminação, segundo a qual o sujeito se torna agente de seu próprio desenvolvimento.
Enfim, nas palavras de Vygotsky (2001, p.155), somente uma adequada “organização da aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem”. Assim, o bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento atual, isto é, ultrapassa o nível de conhecimento já interiorizado.
Conforme estudamos até aqui, o ensino promotor de aprendizagem e de desenvolvimento cognitivo-afetivo cumpre a função de expandir os conhecimentos do estudante, intensificar sua capacidade de generalização e nortear seu pensar e seu agir diante de novas situações ou realidades. O conhecimento escolar, ou seja, teórico-científico apropriado pelo estudante o instrumentaliza no processo de análise de fatos e fenômenos naturais ou sociais. Juntamente com o “conhecimento adquirido, desenvolve-se um crescente potencial de pensamento, de assimilação de cognições novas dentro daqueles sistemas de conhecimentos adquiridos anteriormente que constituem a ‘experiência precedente’” (BOGOYAVLENSKY; MENCHINSKAYA, 1991, p.45-46).
Figura 3: Valores saudáveis.
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A leitura e a escrita, como conhecimento escolar, também, cumpre a função social descrita. Martins afirma que a aprendizagem da leitura e da escrita se liga ao processo de desenvolvimento global do indivíduo, ou seja,
[...] liga-se por tradição ao processo de formação global do indivíduo, à sua capacitação para o convívio e atuação social, política, econômica e cultural. Saber ler e escrever, já entre gregos e romanos, significava possuir as bases de uma educação adequada para a vida, educação essa que visava não só ao desenvolvimento das capacidades intelectuais e espirituais, como das aptidões físicas, possibilitando ao cidadão integrar-se efetivamente à sociedade, no caso à classe dos senhores, dos homens livres (MARTINS, 1991, p.22).
Os estudos de Luria (2001) destacam a relevância do processo de apropriação da leitura e da escrita por promoverem mudanças psíquicas e sociais no homem e na espécie humana. De tal forma, os atos de ler e de escrever determinam transformações internas no homem (linguagem, pensamento, percepção, atenção, memória, emoção) e externas que possibilitam sua autonomia nas relações da vida social.
O professor, ciente das transformações internas e externas que a aprendizagem da leitura e da escrita promove, sistematiza o seu ensino de modo que não se prende às técnicas de ler e de escrever nem a seu uso em ambiente escolar com fim em si mesmo: resolver tarefas e avaliações escolares. Sua concepção de leitura e de escrita ultrapassam os muros da escola e alcançam sua função de emancipação do homem e de participação consciente, na sociedade em que está inserido.
Esta concepção nos faz lembrar de Paulo Freire que compreende o ato de ler para além da tradução da escrita. Ler é um:
[...] processo que envolve uma compreensão crítica de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele (FREIRE, 2001, p.8).
O ensino da leitura e da escrita exige ações intencionais e adequadamente planejadas pelo professor e, paralelamente, participação ativa e consciente por parte do estudante. O sistema de escrita alfabético é formado por sistema de conceitos teóricos e altamente complexo, com normas de padronização.
Conforme estudamos até aqui, o ensino promotor de aprendizagem e de desenvolvimento cognitivo-afetivo cumpre a função de expandir os conhecimentos do estudante, intensificar sua capacidade de generalização e nortear seu pensar e seu agir diante de novas situações ou realidades. O conhecimento escolar, ou seja, teórico-científico apropriado pelo estudante o instrumentaliza no processo de análise de fatos e feSegundo Soares (2004), a natureza desse objeto de conhecimento, o sistema de escrita alfabético, em processo de apropriação na escola é um objeto linguístico constituído de relações convencionais e geralmente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Com a intervenção do professor, amplia-se o acesso ao objeto linguístico e à sua exploração.nômenos naturais ou sociais. Juntamente com o “conhecimento adquirido, desenvolve-se um crescente potencial de pensamento, de assimilação de cognições novas dentro daqueles sistemas de conhecimentos adquiridos anteriormente que constituem a ‘experiência precedente’” (BOGOYAVLENSKY; MENCHINSKAYA, 1991, p.45-46).
Ampliam-se também as experiências para o desenvolvimento da oralidade e dos processos de percepção, compreensão e representação, elementos importantes para a apropriação do sistema de escrita alfabética e de outros sistemas de representação, como os signos matemáticos, os registros artísticos, midiáticos e científicos e as formas de representação do tempo e do espaço (BNCC, 2017, p.56).
Nos processos de leitura e de escrita estão implícitos um sistema de conceitos científicos. Cada conceito que compõe esse sistema forma uma rede conceitual e o mesmo precisa ser alvo de ensino sistematizado e consciente, ou seja, exige sequências didáticas adequadamente organizadas e o estudante precisa estar consciente do porquê de seu estudo.
Apresentaremos, na sequência, uma organização de ensino de um conceito basilar nos processos de leitura e de escrita, sinais gráficos de pontuação. Essa organização está fundamentada nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural que estudamos até aqui, desde o desenvolvimento filo e ontogenético da leitura e da escrita às concepções psicológicas de aprendizagem e de desenvolvimento cognitivo-afetivo.
A organização do ensino de sinais de pontuação que exporemos, neste tópico, é uma síntese literal de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá pela Prof.ª Ma. Patrícia Cristina Formaggi Cavaleiro, concluída em 2009. A pesquisa teórico-prática conta com um experimento didático realizado junto a estudantes da 3ª série (4º ano) dos anos iniciais do ensino fundamental, em uma escola municipal, no Paraná. Este experimento foi publicado, como capítulo do livro Aprendizagem conceitual e organização do ensino: experimentos didáticos na educação básica, em 2019, e resulta da parceria entre a Prof.ª Ma. Patrícia Cristina Formaggi Cavaleiro Navi e sua orientadora, a Prof.ª Drª Marta Sueli de Faria Sforni.
Destacamos que, estudar este experimento nos possibilita compreender as relações teórico-práticas imprescindíveis para nós, profissionais da educação, atuarmos cada vez mais conscientes dos processos educativos escolares em benefício de uma formação humana integral dos estudantes e, especificamente, da apropriação de conceitos interligados à leitura e à escrita. O conceito, objeto de estudo do experimento, são os sinais gráficos de pontuação. O objetivo é promover a apropriação desse conceito, assim como a conscientização de sua função em um texto. Por conseguinte, evidencia a função social da leitura e da escrita.
Na exposição da sequência didática, contida no experimento, negritamos terminologias que remetem aos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural estudados nesta unidade, assim como nas unidades anteriores.
O planejamento do experimento didático está estruturado conforme as ações que seguem (NAVI; SFORNI, 2019):
Ponto de partida para planejamento
Análise do sujeito da aprendizagem
As ações de ensino
Apresentação do problema desencadeador de aprendizagem
Avaliação – Inclusão de novos problemas de aprendizagem
Para a elaborar o planejamento e colocá-lo em desenvolvimento, realizamos as seguintes ações: analisamos o sujeito da aprendizagem; o objeto de ensino; e os processos cognitivos-afetivos a serem contemplados nas tarefas de aprendizagem (CAVALEIRO; SFORNI, 2019):
A tarefa de pensar a organização de um ensino que mobiliza as funções psíquicas e promova aprendizagem, pressupõe também a ação por parte do professor de pensar quais conteúdos o aluno já domina, quais ainda não sabe, bem como pensar de que forma podemos mobilizá-lo para a aprendizagem.
Os estudantes encontram-se em idade escolar, etapa na qual tem a atividade de estudo como atividade dominante ou atividade-guia nos processos de aprendizagem e de desenvolvimento cognitivo-afetivo. Na idade escolar, a criança passa a ter relações mais sistemáticas do que aquelas desempenhadas nas brincadeiras de educação infantil. Os familiares passam a acompanhar os estudos e as tarefas de forma mais acentuada e isso exige da criança que ela modifique seu comportamento para atender as exigências que são feitas nessa fase de estudos. Essa valorização social das tarefas desenvolvidas na atividade de estudo faz com que a criança aos poucos migre seus interesses da brincadeira para o estudo e reorganize seu comportamento e até mesmo modifique seus interesses. Sendo assim, torna-se necessário pensar em tarefas que põem em curso o pensamento e que impulsione o aluno a uma relação teórica com o conteúdo escolar e que, assim, suas relações possam ser menos diretas e mais mediadas pelo conceito aprendido.
Inicialmente realizamos avaliações diagnósticas na área de língua portuguesa, por meio de uma produção textual com base em uma sequência de gravuras (conforme figura 1). O texto foi produzido sem a intervenção da professora da turma.
Figura 1 – Sequência de gravuras – avaliação diagnóstica.
Fonte: Tufano, 1994, p.58.
Na perspectiva de Vigotski (2007), o nível de desenvolvimento real refere-se às aquisições já consolidadas, contemplando conteúdos que a criança já domina, sendo possível que ela os utilize como elementos do pensamento. Já a zona de desenvolvimento proximal caracteriza-se pelas funções que a criança ainda não é capaz de realizar sozinha, mas consegue fazê-la com a ajuda dos adultos. Nesse sentido, o ensino devidamente organizado deve atuar na zona de desenvolvimento proximal para que as tarefas que a criança realiza com ajuda e colaboração de adultos mais tarde sejam realizadas de forma independente, passando a compor o nível de desenvolvimento real.
Identificamos que a escrita alfabética estava no nível de desenvolvimento real da maioria dos alunos. Os alunos ainda apresentavam dificuldades específicas do processo de alfabetização, caracterizadas por Lemle (2005) como dificuldades da apropriação das relações grafema fonema quando vinculadas às relações não-biunívocas e às relações arbitrárias. Mas, de modo geral, esses alunos conseguiam utilizar o sistema alfabético para a comunicação escrita.
Na figura 2 apresentamos um texto que expressa o tipo de produção textual dos alunos.
Observamos no texto da maioria dos alunos: falta de sequência lógica na ordenação das ideias, problemas de paragrafação, dificuldade de pontuação, vocabulário limitado, entre outras dificuldades. No conteúdo de pontuação, observa-se nos textos produzidos que os alunos, de forma geral, utilizam poucos, ou quase nenhum, sinal de pontuação. Isso pode ser explicado pelos estudos de Mayrink-Sabinson (apud LEAL; GUIMARÃES, 2002, p. 135) que demonstram que as crianças começam a utilizar os sinais de pontuação gradativamente quando percebem a importância de seu uso, de modo especial, quando percebem a interferência da pontuação na clareza e na lógica do que desejam comunicar, ou seja, quando reconhecem a sua função de suplementação semântica. A preocupação dos alunos estava ainda voltada para a escrita da palavra isolada e muito pouco para a estrutura das frases, orações, períodos e parágrafos em seu sentido discursivo, o que resultava na falta de atenção para os aspectos da pontuação. Consideramos ser esse o próximo conhecimento a ser apropriado pelos estudantes para que avançassem no domínio da linguagem escrita. Assim, definimos o conteúdo de pontuação como base para a organização do experimento.
Passamos, então, para a análise do conhecimento que os alunos tinham sobre o conteúdo específico que seria objeto da atividade de estudo. Para essa análise, realizamos a seguinte atividade: Escrevemos em cinco cartazes que foram afixados no quadro, a seguinte frase: Deixo os meus bens à minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do pedreiro nada aos pobres, sem qualquer pontuação. Pedimos aos alunos que observassem o que aconteceria com elas de acordo com a história que seria contada:
Um homem rico, sentindo-se morrer, pediu papel e caneta, e escreveu assim:
"Deixo os meus bens à minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do pedreiro nada aos pobres".
Não teve tempo de pontuar e morreu. A quem deixava ele a sua riqueza? Eram quatro os concorrentes.
Chegou o sobrinho e fez estas pontuações numa cópia do bilhete:
"Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho. Jamais será paga a conta do pedreiro. Nada aos pobres".
A irmã do morto chegou em seguida, com outra cópia do escrito; e pontuou-o deste modo:
"Deixo os meus bens à minha irmã. Não a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do pedreiro. Nada aos pobres".
Surgiu o pedreiro que, pedindo cópia do original, fez estas pontuações:
"Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do pedreiro. Nada aos pobres".
O júri estudava o caso, quando os pobres da cidade apareceram; e um deles, o mais sabido, tomando outra cópia, pontuou-a assim:
"Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do pedreiro? Nada! Aos pobres”
Fomos pontuando as cinco frases conforme a situação apresentada no texto. A cada frase pontuada, ela era lida com a correspondente entonação e questionamos sobre as mudanças no sentido do texto. A primeira pergunta foi: Para quem o homem rico deixou os bens? Essa pergunta funcionou como forma de mobilizar a análise das frases pelos alunos. Após a pontuação das frases, foi lançada a seguinte indagação aos alunos: O que aconteceu com as frases? Em seguida, discutimos com a turma: Para que servem os pontos?
Após as discussões entre os alunos em pequenos grupos houve a exposição das respostas no grande grupo. Com base nas respostas foi possível identificar tipos de pensamento diferenciados dos alunos sobre a pontuação, alguns vinculados ao aspecto empírico e outros relacionados ao teórico. Conforme mostra o quadro abaixo:
Pensamento Empírico
Quadro 1: Tipos de pensamento apresentados pelos alunos
Pensamento Teórico
Ani
Ane
As frases estão diferentes porque os sobrinhos mudam, a irmã mudou, o pedreiro mudou e o pobres também mudaram. Os pontos não estão iguais.
Porque elas foram mudadas de jeito diferente dos pontos foram o Sobrinho, a Irmã e o Pedreiro.
Fonte: Arquivo próprio.
Joa
Isa
Kal
As frases foram mudadas porque os pontos fizeram mudar.
Wel
Tal
As frases colocaram pontos como esses ?!..
As frases foram mudadas porque os pontos mudaram elas e cada ponto deu um sentido
Bruna1
Elas foram mudadas pelo: irmão, sobrinho, pedreiro e os pobres
As frases estavam iguais depois mudaram por causa dos pontos
Ficou separadas e todos ganho pulando de alegria
Os alunos que evidenciam pensamento empírico sobre a pontuação não fizeram menção à escrita, mas à situação específica apresentada no texto. Já alguns estudantes revelaram indícios de um pensamento teórico sobre a escrita, pois reconhecem a relação entre pontuação e unidade de sentido do texto.
1-Resposta vinculada ao aspecto aparente da pontuação
2-Respostas vinculadas a uma situação particular de uso da pontuação
3-Respostas vinculadas ao início de uma compreensão da relação pontuação-sentido do texto
She - Servem para separar as frases.
Brun 1 - Serve para separa, para não ficar perto.
Ale - quando as pessoas vão falar quando está admirado.
Jes - Para mudar as frases
Car - Quando uma pessoa vai falar.
Joa - Para separar as letras uma da outra.
Isa - Para fazer uma pergunta, para os personagens falarem, para separar,etc.
Fonte: Arquivo próprio.
Brun - Para mudar as coisas ou deixar um texto ou uma frase melhor.
Tha - Para mudar a ideia do que está escrito
Wes - Servem quando eles falam
Tal- Eles servem para mudar as falas e as frases.
Rod - Os pontos servem para separar, e quando os outros falam e quando está assustado.
Wel - Para separar as palavras e entender.
Quadro 2: Níveis de respostas dos alunos
O terceiro grupo de alunos não se refere ao aspecto visual da pontuação, nem se atêm ao uso da pontuação em uma situação particular, ao contrário, buscam uma explicação geral para o uso de qualquer sinal gráfico usado na escrita, ou seja, parecem buscar uma generalização que se pauta em sua relação com os efeitos de sentido do texto.
Para a organização do experimento investigou-se, portanto, a produção histórica da pontuação para verificar que necessidades humanas estão presentes nele – esta investigação vincula-se ao desenvolvimento filogenético da humanidade. A origem dos sinais de pontuação está relacionada à evolução da escrita. Cagliari (1999) expõe que o primeiro sistema de pontuação da história da escrita surgiu no século II a.C., criado por Aristófanes e Bizâncio e nele já é possível identificar as funções do ponto final, dois pontos e vírgula.
Os sinais de pontuação, em seu início, surgiram com a finalidade de indicar pausas para respirar na leitura em voz alta, mas com o passar do tempo outras funções lhe foram atribuídas, entre elas a função semântica e a sintática. Não obstante, na escola é comum encontrar o ensino da pontuação pautado somente na oralização da escrita, apoiado em definições de que a vírgula serve para dar uma paradinha na leitura, que a exclamação serve para sinalizar espanto, entre outras definições imprecisas.
Consideramos que a compreensão destes elementos foram primordiais para a elaboração do experimento, pois assim, foi possível propor necessidades semelhantes às históricas (filogênese) na organização do ensino do conteúdo de pontuação. Que necessidades são essas? Garantir que a produção escrita consiga, em si mesmo, comunicar o conteúdo no sentido pensado pelo seu autor. As marcas criadas, além das próprias palavras, atendiam a essa necessidade discursiva, portanto, a pontuação serve ao texto na diagramação, na sintaxe, mas sobretudo na semântica, a fim de torná-lo mais claro e evitar problemas de ambiguidade (CAGLIARI, 1999). Levar os alunos à compreensão da função dos sinais de pontuação foi o que orientou a elaboração das tarefas de ensino realizadas nos experimentos.
Para a organização da tarefa de ensino que mobilizasse as funções do pensamento foi necessário levar alguns fatores em conta: que tipo de ações são esperadas do aluno? Que tipo de conteúdo precisa fazer parte da atividade? Como (forma) deve ser a mediação do professor para que o conteúdo mobilize as funções do pensamento do estudante (sujeito)?
Em vista disso, a organização das tarefas de estudo procurou orientar-se partindo das propostas de atividades inseridas em um contexto capaz de produzir sentido discursivo, nesse caso, o texto. Desse modo, partia-se de uma situação que envolvia um contexto de comunicação. A tarefa exigia que a pontuação da frase estivesse subordinada à textualidade que a envolvia. Nesse âmbito, a ação de escolha dos sinais de pontuação precisava articular as partes do texto de forma que produzisse sentido discursivo.
Contemplamos tarefas que exigiam do aluno a discussão em grupos para a tomada de decisões com o conteúdo de pontuação e em seguida a explicitação verbal do conteúdo já que a ação de justificar as respostas pauta-se no princípio de que a linguagem não apenas expressa o pensamento, mas também permite sua organização; assim, o momento de expressar verbalmente a ação realizada é importante na aprendizagem dos alunos e também permite ao professor acompanhar o entendimento dos alunos sobre o conteúdo.
As tarefas também exigiam do aluno “pensar com o conteúdo”, ou seja, o conteúdo precisava funcionar como mediador das respostas e, para isso, era necessário, análises e discussões que levavam o aluno a refletir e pensar sobre as situações envolvendo assim um nível teórico de pensamento.
Se era necessário mobilizar as ações mentais dos alunos, não bastava saber que pontuação usam ou deixam de usar, mas saber o que pensam sobre a pontuação, complementando assim o conhecimento sobre a relação da turma com a escrita já parcialmente identificada mediante a avaliação diagnóstica. Com base na análise dos sujeitos da aprendizagem, no conteúdo de ensino e nos processos cognitivos necessários à aprendizagem, passamos à elaboração do planejamento das atividades.
A problematização apresentou-se como fator decisivo na mobilização de ações mentais expostas anteriormente, e segundo Rubstov (1996, p. 133) “o conceito de problema de aprendizagem está estreitamente ligado ao de ação cognitiva, a qual caracteriza principalmente pelo modo de analisar um objeto [...]”.
Na organização das atividades procuramos inserir as atividades escritas em um contexto capaz de produzir sentido discursivo, nesse caso, o texto. No entanto, esse texto não era trabalhado integralmente de forma escrita, ele era lido ou contato por nós, e dele eram retiradas frases que deveriam ser pontuadas de acordo com o sentido que o contexto exigia.
O primeiro foi o seguinte: os alunos deveriam resolver, por meio do uso da pontuação situações problemas, conforme a situação que segue:
Um homem ia viajar, mas chegou atrasado à rodoviária e o ônibus já estava saindo. Então ele gritou para o motorista não prosseguir, pois ele gostaria de viajar naquele ônibus. Então ele escreveu a seguinte frase num papel: “Não espere”
Após a leitura da situação problema fizemos o seguinte questionamento: como escrever essa frase de modo que o motorista entenda que é para parar o ônibus e esperar? A resolução desses problemas era feita em pequenos grupos e depois discutidas no coletivo.
Para a realização das tarefas, os alunos eram organizados em grupos com quatro componentes para a resolução de situações-problema que envolviam o conteúdo em pauta. Os grupos eram formados conforme a afinidade entre os integrantes.
Considerávamos que essa forma de organização da sala poderia favorecer o aparecimento de conflitos teóricos e discussões entre os alunos na resolução das tarefas propostas, já que se esperava que as situações-problema desencadeassem necessidades de realização de ações para atingir um objetivo e, no grupo, a ação de cada um precisava ser discutida para que chegassem a uma ação comum.
Após as discussões preliminares nos pequenos grupos, passávamos as discussões coletivas. Nesse momento, foi possível a discussão e a interação entre todos, sendo que cada grupo já tinha uma possibilidade de resposta formulada anteriormente.
Seguem alguns episódios que ilustram o movimento dos estudantes em direção à apropriação conceitual:
P - Qual foi o grupo que conseguiu fazer o motorista parar o ônibus e esperar
P - O grupo da Tha, eles colocaram assim: “Não. espere!”. Turma, está certo?
Seb - Não, pois o homem está admirado - O aluno lê a frase com a entonação correta da pontuação.
P - Então, mas será que mesmo com esse tipo de ponto, o motorista conseguiu entender que era para ele parar? - Veja bem turma, é para o ônibus fazer o que?
Seb - Parar
Alunos - Parar
P - E esse ponto aqui (a professora refere-se ao ponto de exclamação do final da frase) serve para dizer o que? Não quer dizer que o homem estava desesperado, emocionado, aflito por que o ônibus estava saindo?
Seb: É daí sim.
Jes - Olha prof. Aquele ali, tá errado. “Não espere.”
Dan - É, ta errado. Porque não colocaram o ponto ali no meio daí não dá para o motorista entender.
P - Como se lê essa frase? Não espere. O que o motorista entenderia com essa frase pontuada dessa forma?
Seb - que não era para ele esperar.
P - E o que temos que mudar para o motorista entender que é para ele esperar?
Dan - colocar um ponto no meio.
P - Ale, o que temos que colocar para ele entender?
Brun 2 - Pode ser exclamação no meio da frase e depois um ponto final.
Daí, a frase fica assim: “Não! espere.”
P - Agora vamos ler. Deu para entender?
Alunos - Deu
P - O que estava faltando era o ponto de exclamação, e agora o que falta?
Dan - Letra maiúscula.
Após a análise das frases pontuadas pelos grupos, lançamos outro problema: a mesma frase deveria ser pontuada de forma que transmitisse outra mensagem. A tarefa consistia na seguinte situação-problema:
Do primeiro banco do ônibus, uma mulher gritou que não era para o motorista esperar, pois aquele homem era um louco.
Depois da exposição da situação-problema, pediu-se aos alunos que pontuassem a frase “Não espere” de forma que o motorista entendesse que não era para ele esperar e sim prosseguir.
De acordo com Sforni (2004), a modificação das situações-problema, que nesse caso se refere à pontuação de diferentes frases, possibilita aos alunos extrair as características essenciais que determinam o conteúdo e a estrutura do conceito. Isso foi possível devido à organização da atividade, que modificou os parâmetros de referência dos alunos, desencadeando uma dinâmica em que as relações essenciais seriam adequar os pontos de acordo com a semântica. A tarefa de pontuar a mesma frase de forma diferente possibilita comparar dois objetos que aparentemente são os mesmos, porém as relações entre conteúdo e objeto precisam ser modificadas.
Essa nova etapa da atividade visava conduzir os alunos a uma generalização, haja vista que o mesmo conteúdo deveria ser usado em uma situação diferente, e para sua realização não bastava somente reproduzir o conteúdo da tarefa, sendo preciso que o aluno realizasse uma análise, já que precisava pontuar a frase de maneira adequada à nova mensagem proposta. As tarefas evidenciam o uso da pontuação com a função de dar sentido à frase e torná-la compreensível ao leitor.
O posicionamento da professora, nas intervenções, demonstra a sua intenção de atuar na zona de desenvolvimento proximal do aluno, já que ela está conduzindo, provocando ações mentais mediante as respostas dos alunos, e desse modo, atuando no nível de desempenho com os conteúdos que os alunos ainda não são capazes de dominar sozinhos.
Ao final da realização das tarefas, como uma maneira de sintetizar de forma sistemática as ações dos alunos, a professora provocou questionamentos para concluir a atividade.
P - O que dá pra gente pensar disso tudo que aconteceu hoje? Se a gente colocar os pontos na frase de qualquer jeito fica correto?
Alunos - Não
P - Então a gente precisa fazer o quê?
Wel - falar para depois fazer e colocar os pontos.
P - Seb, posso colocar qualquer ponto?
Seb - não primeiro tem que pensar.
P - Ah, então primeiro tem que pensar o que a gente vai falar para depoissaber os pontos que vai usar?
P - É isso turma?
Alunos - Sim.
A professora suscita os estudantes a sintetizar o que aconteceu, isto é, fazer o processo inverso da análise, identificar o que era comum (geral) a todas as situações de pontuação. Ao mesmo tempo em que a professora exige que os alunos sintetizem e concluam, mais uma vez a sua mediação mostra-se primordial nesse processo, porque ela conduz a ação mental do aluno: “Se a gente colocar os pontos na frase de qualquer jeito, fica correto?” Quando o aluno responde “não”, novamente a professora exige que ele justifique a resposta. A insistência para que os estudantes justifiquem suas respostas pauta-se no princípio de que a linguagem não apenas expressa o pensamento, mas também permite sua organização; assim, o momento de expressar verbalmente a ação realizada é importante na aprendizagem dos estudantes.
Na afirmação do estudante “primeiro, tem que pensar” está contida a necessidade da elaboração ativa, de ações mentais, para que sua aprendizagem se efetive. Desse modo, ao mesmo tempo em que executa a tarefa, seus processos cognitivos-afetivos são desenvolvidos. Além de esse aluno aprender um conteúdo, ele aprendeu também um modo de ação que lhe dá autonomia para futuras produções textuais, ou seja, a sua ação na tarefa estendeu-se para além da resolução da tarefa específica.
AVALIAÇÃO - Inclusão de novos problemas de aprendizagem.
Novas situações envolvendo o conteúdo foram trabalhadas com a intenção de analisar se os estudantes estavam conseguindo generalizar o conteúdo, isto é, desvincular-se de situações particulares e utilizá-lo em situações diferentes daquelas apresentadas anteriormente. A tarefa dos estudantes consistia em resolver, por meio do uso da pontuação, o seguinte problema:
Leonardo estava com um grande problema e pediu ajuda para a sua mãe. Sua mãe disse para ele não se preocupar, pois aquele problema era pequeno demais, e o seu pai poderia resolver facilmente. A mãe disse ao Leonardo. Isso só ele resolve.
Depois da exposição da situação-problema pediu-se aos estudantes que pontuassem a frase de forma que Leonardo entendesse que o seu problema é pequeno demais e o seu pai poderia resolvê-lo.
Em seguida, uma nova situação foi lançada:
A irmã mais nova de Leonardo estava com o seguinte problema: na escola um aluno colocou um apontador no seu estojo e a acusou de roubo. Sua mãe disse que esse problema era muito grave e somente o seu pai poderia resolver. Então ela disse: Isso só ele resolve
Os alunos deveriam pontuar a frase de forma que a irmã mais nova entendesse que esse problema seria resolvido somente pelo seu pai.
Essas tarefas foram feitas pelos alunos com certa facilidade. E observamos a preocupação da maioria deles de pensar no sentido da mensagem para saber como pontuar de modo que garantisse a transmissão desse sentido.
Por meio do experimento foi possível perceber que é preciso que o ensino gere uma aprendizagem ativa por parte dos alunos, capaz de mobilizar e ao mesmo tempo desenvolver suas funções psíquicas. Nas tarefas normalmente realizadas em sala de aula, o conceito é transmitido pelo professor de forma pronta, cabendo aos alunos “treinar” o conteúdo por meio da realização de atividades repetidas para “aprender”. As atividades propostas no experimento exigiram dos alunos a mobilização de funções como a atenção, o raciocínio, e operações vinculadas ao pensamento teórico.
No final das intervenções, solicitamos aos alunos a produção de um texto e verificamos que os textos apresentaram uma estrutura diferenciada daquela observada na avaliação inicial. Com relação ao conteúdo de pontuação verificou-se o uso dos pontos como mais frequência, bem como sua adequação a situação de uso. Segue um texto como exemplo:
Figura 3 – Avaliação Diagnóstica.
Fonte: Arquivo próprio.
Por meio da análise qualitativa das respostas dos alunos durante as atividades de ensino é possível verificar que essa forma de organizar o ensino foi favorável à aprendizagem e ao desenvolvimento dos estudantes.
Ao concluirmos a presente pesquisa, as palavras de Menchiskaia (1969) fizeram mais sentido para nós:
A assimilação dos conceitos não é uma simples transmissão de conhecimentos do adulto para a criança, mas um processo complicado que depende da experiência anterior, dos conhecimentos, que já se tem, da atividade que se realiza no processo de assimilação e do sistema de operações mentais que se utiliza (MENCHISKAIA, 1969, p. 245, tradução nossa).
Ficou evidente que para buscar melhor organização dos processos de ensino e aprendizagem o professor necessita conhecer os elementos necessários para compor o ensino: os estudantes, o conteúdo e os processos cognitivos e afetivos envolvidos nesse processo.
A sequência de ações docente e discente no ensino de sinais gráficos de pontuação busca superar limites dos processos de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita vivenciadas nas escolas e reveladas em avaliações externas como o PISA, o SAEB e a ANA. Notadamente, são ações sistematizadas de forma consciente por parte do professor e realizadas, também, de forma consciente pelo estudante, o que permite alcançar os objetivos propostos e revelar a função social da leitura e da escrita aos participantes do experimento como para nós leitores do mesmo.
Entendemos, então, que garantir, ao estudante, a aprendizagem de conceitos científicos e, consequentemente, o desenvolvimento humano é função primeira da escola em uma sociedade democrática. Dentre esses conceitos científicos é primordial que se assegure a apropriação da leitura e da escrita, pois por meio do domínio desses bens culturais o estudante se insere na sociedade, compreende os fenômenos sociais e naturais e participa conscientemente das atividades humanas.
Seguramente, podemos afirmar que as ações de estudos realizadas pelo professor e pelos alunos só serão frutíferas se houver tomada de consciência de seus atos, com o entendimento do que estão fazendo e seu porquê.
Caros(as) estudantes, chegamos ao final desta unidade assim como da disciplina: A função social da leitura e da escrita. E, ao finalizar estudos de uma temática relevante como esta, nos conscientizamos de quão importante são os conhecimentos e as ações práticas do profissional da educação na efetivação dos processos de aprendizagem e de desenvolvimento do estudante.
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